A Universidade Planetária do Futuro tem grande satisfação em publicar e divulgar artigo da Professora Doutora Maria Inês Hamann Peixoto, da Universidade Federal do Paraná, cujo tema é Educação e Arte.
EDUCAÇÃO E ARTE: UM NEXO
CATEGÓRICO
PEIXOTO HAMANN, Maria Inês – UFPR
RESUMO
Neste
trabalho, analisa-se a concepção materialista dialética da arte como um produto
do trabalho humano criador livre, expressão da concepção de mundo do
artista enquanto indivíduo determinado/determinante do contexto
histórico-sócio-político e cultural a que pertence. Assim, a arte é entendida
simultaneamente como criação vinculada à vida, ideologia e
forma de conhecimento. Como tal, é fonte de humanização, ao
remeter os indivíduos a toda a história humana passada, que a obra de arte
traduz e condensa, e à contemporaneidade, que ela sintetiza e expressa.
Tece-se, então, uma crítica tanto às concepções "arte pela arte"
e "arte como auto-expressão emocional" quanto à indústria
cultural, discutindo a função da escola como difusora/promotora do saber
necessário a uma fruição consciente/ativa da arte.
Palavras-chave: materialismo dialético e arte; arte e
humanização; arte e educação.
EDUCAÇÃO E ARTE: UM NEXO
CATEGÓRICO
PEIXOTO HAMANN, Maria Inês - UFPR
A partir do estudo das
diversas concepções existentes, assume-se a posição dialética que entende a Arte
como trabalho humano criador livre, cujos produtos são objetos que
expressam uma visão de mundo e cuja existência se configura pela ótica de um
indivíduo o qual, por sua vez, é determinado/determinante do contexto
histórico, social, político e cultural a que pertence, contexto esse
inevitavelmente envolto em
ideologias. Assim sendo, toda criação artística é de modo
necessário marcada pela ideologia e, ao mesmo tempo, não apenas envolve/requer
conhecimentos historicamente acumulados (ciência) para o seu processo de
produção como é também fonte geradora de conhecimentos, tanto sobre o
indivíduo-criador e o contexto histórico-social-político-cultural em que foi
produzida (consciência) como sobre o próprio criador/fruidor, que se
revela a si mesmo a cada nova experiência criativa e interpretativa (autoconsciência).
Dessa maneira, a arte é igualmente, expressão e fonte de conhecimento do
universo humano, que o apresenta/representa em objetos de ordem material ou
espiritual.
Tendo por base esse posicionamento, repudia-se a concepção
"arte pela arte" – que propugna uma cisão entre Arte e vida, e
"arte como expressão de emoções pessoais" do artista, tido como um
"ser especial", "iluminado", apreendido de modo isolado em
relação à sua contemporaneidade e aos interesses sócio-econômico-políticos
vigentes nas sociedades de que é oriundo, e que, por "inspiração" de
qualquer ordem – imanente ou transcendente –, cria obras de arte desvinculadas
da vida real, voltadas para um público restrito, porque somente apreensíveis
por especialistas. Da mesma forma, tece-se uma crítica à indústria
cultural que, ao produzir uma ‘arte média’, banaliza a expressão artística e,
em essência, embota as possibilidades de criação efetivamente livre e de
crescimento humano, lembrando o papel da escola como instituição que tem por
finalidade a transmissão, conservação e criação do conhecimento e que, na área
do ensino das Artes deve promover as melhores condições para o desenvolvimento
da sensibilidade e de uma fruição ativa/crítica dessa produção humana.
Este
trabalho, então, trata da Arte como produção livre de objetos – materiais ou
espirituais –, totalidades concretas vinculadas à vida, carregadas de conteúdos
fundidos em formas que se realizam como particularidades, expressões
simultaneamente individuais e humano-genéricas.
Com
base em tais pressupostos, defende-se a Arte como um forte nexo entre o
indivíduo e a totalidade da criação humana, porque no processo livre de sua
produção-fruição, ela remete os indivíduos a toda a história humana anterior –
que a obra de arte traduz e condensa –, e à contemporaneidade, que ela
sintetiza e expressa. Assim, a criação-fruição de um objeto artístico, permite
aos indivíduos mergulharem com a integralidade de suas capacidades humanas –
sensibilidade, intelecto e emoção – na vida da humanidade que os antecedeu e
que os envolve. Por essa concepção, a Arte constitui uma fonte de
humanização.
A concepção dialética da arte-vida
A concepção dialética da
Arte, essencialmente antropocêntrica, tem por pressuposto a concepção de homem
como o único ser que sendo parte da natureza a ela não está submetido. Ao contrário,
domina-a pelo trabalho, no embate para a produção da existência, processo no
qual constrói de modo coletivo a história e a sociedade, enquanto
dialeticamente é por elas constituído.
Assim, o indivíduo humano é
automediador, significando que se constitui a si mesmo historicamente, no seio
da sociedade, ou seja: “constitui todas as suas potencialidades, as quais não
são pressupostas como algum estado original dado, mas são constituídas na e
pela práxis”, que, como esfera do ser humano, é coletiva, acontece no âmbito
social, comunitário. (PEIXOTO, 2003, p. 41) Dessa maneira, “(...) o caráter social é o caráter universal de
todo o movimento; assim como a sociedade produz o homem enquanto homem,
assim ela é por ele produzida. A actividade e o espírito são sociais
tanto no conteúdo como na origem; são actividade social e
espírito social. O significado humano da natureza só existe para o homem
social. (MARX,1989, p. 194) Logo, sendo a individualidade uma construção
social, não faz sentido opor o indivíduo à sociedade: “importa, acima de tudo,
evitar que a ‘sociedade’ se considere novamente como uma abstracção em
confronto com o indivíduo. O indivíduo é o ser social”. (MARX, 1989, p.
195)
Como esfera específica do
humano, a práxis é atividade que, ao produzir e ser produzida no movimento
histórico, expressa a totalidade do homem e do mundo “da matéria e do espírito,
de sujeito e objeto, do produto e da produtividade”. (KOSÍK, 1976, p. 201-202)
Fundem-se, numa unidade, pensamento e ação: a práxis é ação reflexiva e
reflexão ativa.
Desse modo, a práxis
artística como trabalho humano de criação livre indica que nela e por
ela o artista materializa sua “subjetividade nos objetos que cria-constrói, ao
mesmo tempo em que promove a subjetivação do mundo objetivo, imprimindo-lhe a
marca do humano, quer
dizer, humanizando-o” (PEIXOTO, 2003, p.
42). Entre tais marcas ressalta-se o corpo de conhecimentos de cunho técnico,
científico e filosófico criado e desenvolvido histórica e socialmente, bem como
a Arte, em todas as suas facetas e áreas.
Tais são as marcas que
permitem ao homem humanizar-se, fazer-se homem e reconhecer-se como
tal, pois são elas – e os objetos criados como produtos de sua ação sobre a
realidade – que configuram sua individualidade e o confirmam como ser genérico,
parte viva e ativa da humanidade. Daí que, quanto mais democratizado, maior e
mais intenso for o contato dos indivíduos com tudo o que a história humana lhe
legou: o conhecimento, as idéias, as técnicas, enfim, o universo da cultura e,
como parte dele, a Arte, – transmitidos/construídos no processo educativo
formal –, melhores serão suas condições e chances de tornar-se humano, já
que o simples fato de ter nascido de humanos não lhe garante que assim o seja.
O processo de assenhorear-se de si (constituição da autoconsciência) através do
domínio do complexo universo criado pelos homens – filosofia, arte, ciência e
técnica – (constituição da consciência do mundo) é um
longo e árduo caminho marcadamente coletivo. Como já apontado, esse processo depende
da transmissão e apreensão da totalidade de tudo o que foi (e está sendo)
construção histórica do mundo humano, passado e presente, para a projeção do
futuro. Para que isso aconteça, todos dependem de tudo (os meios) e de todos.
A Arte,
nesse caminho, exerce papel essencial: pela ótica do trabalho de criação
livre de um indivíduo, concretizam-se num objeto (uma particularidade de
qualquer ordem) visões de mundo socialmente construídas, herança de toda a
história anterior, que representam/apresentam uma síntese de ações,
conhecimentos e técnicas, além de modos de pensar e sentir, situados num tempo
e num espaço específicos. Tais “maneiras de pensar e de sentir não são [...]
entidades independentes em relação às ações e aos comportamentos dos homens. Só
existem e só podem ser compreendidas em suas relações interindividuais que lhes
conferem todo conteúdo e toda riqueza” (GOLDMANN, 1993, p. 106. Grifado no
original). Por isso, uma obra de arte, fundindo conteúdo e forma numa unidade
indissolúvel, para além de expor uma individualidade, carrega em seu bojo a
história de uma época – que, por sua vez, contém em si a totalidade da história
humana anterior: “(...) na obra é resguardada e preservada a obra de uma
vida; na obra de uma vida, a época; e na época, a totalidade do transcurso
histórico. O nutritivo fruto do historicamente conceituado tem no seu interior
o tempo como preciosa semente” (BENJAMIN, 1991a, p. 163). Por esse prisma, a
obra, além de ser expressão de uma individualidade, nela e por ela reflete
conteúdos que dizem respeito ao homem enquanto ser genérico, configurando-se
como coadjuvante no conhecimento do mundo humano e de sua construção.
Entretanto, mesmo
determinada social e culturalmente e, constituir uma síntese expressiva da
história humana anterior, a obra de arte, quando posta na existência, passa a
ser uma nova realidade social concreta, com vida própria. Como tal, a
cada ação interpretativa ela interage, determinando alterações ou
transformações no contexto, nos indivíduos – e destes em relação àquele. Ao
criar situações inusitadas, a Arte determina comportamentos e idéias em relação
a ela e ao mundo que expressa: seja de indiferença, de rejeição ou de
aceitação, valorização e reflexão. Como nova realidade, entretanto, sua
existência não pode ser negada. Assim, no movimento dialético da história,
a obra de arte é simultaneamente uma nova realidade histórico-humano-social,
determinada pelo e determinante do contexto amplo em que existe. Como fruto
do trabalho de um indivíduo, cidadão de uma dada sociedade, um ser ético e
político, necessariamente a obra refletirá uma ideologia com a qual mantém
relações contraditórias e complexas: ora interrogando, ora negando, ora
afirmando ou contestando, ou ainda esquivando-se. São reações e tomadas de posição,
de enquadramento, de crítica ou negação: sempre, porém uma reação, pois
o criador através do objeto criado dialoga com a realidade posicionando-se
frente a ela.
Dessa forma,
contrariamente à posição da "arte pela arte", uma obra jamais será "neutra"
em relação à vida concreta, porque, além de sua própria constituição estar
comprometida com a realidade social e histórica, nela
...estão implicados
(...) um conhecimento relativo e uma tomada de posição do autor frente a esse
determinado contexto concreto de vida, ou seja, uma atitude ética e um
posicionamento político do indivíduo criador em face das lutas históricas do
tempo presente [em especial da sociedade a que pertence], como aprovação ou
negação, que são as formas de ele se relacionar com o mundo. Sem esse conjunto
de determinações, a obra de arte não terá sostanza para existir. (PEIXOTO,
2003, p. 58)
Isso qualifica o "partidarismo
da obra" (desnecessário dizer que não se trata de partidarismo político)
visto ser impossível aos indivíduos em sociedade não tomarem partido frente às
injunções da realidade: o próprio ato de negar-se a marcar posição
explicita nitidamente um posicionamento ético-político frente ao real. Para
LUKÁCS, “a obra de arte autêntica é partidária de cabo a rabo, em todos os seus
poros”, já que “os princípios de sua construção implicam tomadas de posição em
face dos grandes problemas da vida”, além, é claro, das inúmeras decisões sobre
os materiais a serem utilizados, a melhor forma de utilização para expressar,
coerentemente, o conteúdo da obra, etc. Entretanto, o estético deve sempre
prevalecer na obra para que seu valor seja reconhecido: “o partidarismo não
pode ser separado da sua objetividade estética”, pois ele se faz presente na
totalidade da unidade orgânica de forma e conteúdo, da qual é parte essencial (LUKÁCS,
1968, p. 218). No mesmo sentido, Benjamin afirma: “a tendência de uma obra
literária só pode ser politicamente correta se ela também for literariamente
correta” (BENJAMIN, 1991b, p. 188). Ou ainda: “a força ética da pintura não
está na virtude do que ela retrata ou defende, mas na estética que materializa”
(HARRISON; WOOD, 1998, p. 254).
Há que se atentar, portanto, para não cair em
extremos: identificar arte e ideologia ou contrapô-las radicalmente. O primeiro
caso refere-se à posição ideologizante, subjetivista ou sociologista vulgar -
que, por exemplo, associa mecanicamente decadência social à decadência artística;
o segundo extremo - o da oposição entre arte e ideologia - pode chegar a negar
as determinações ideológicas da arte, ignorando suas raízes na existência das
sociedades humanas e, dessa forma, contrapondo-se ao pensamento histórico e
dialético (VÁZQUEZ, 1978, p. 28). A partir de tais considerações, e
sendo a obra de arte “parte integrante da realidade social, é elemento da
estrutura de tal sociedade e expressão da produtividade social e espiritual do
homem”, entende-se que obras humanas de qualquer ordem – científica, filosófica
ou artística – constituem uma totalidade estruturada e complexa cujos elementos
“ideológicos, temáticos, de composição, de linguagem”, estão interligados numa
unidade dialética (KOSÍK, 1976, p. 125). Não cabe, portanto, isolar ou mesmo
privilegiar um elemento em detrimento dos demais.
Entendida dessa
forma, ARTE-VIDA
formam uma unidade indissociável, pois o processo de sua criação e
fruição expressa a totalidade da vida e da história individual datada, e da
vida genérica do homem. Por conseguinte, repudia-se a posição romântica "arte
pela arte", defensora de ruptura entre a Arte e a vida, pari passu à
arte erudita (ou arte elitista, para Canclini). O espírito da arte
pela arte apresenta uma série concatenada de tendências, entre elas
destacam-se: “1.º) à desumanização da arte; 2.º) a evitar as formas vivas; 3.º)
a fazer com que a obra de arte não seja senão obra de arte; 4.º) a considerar a
arte como jogo, e nada mais (...)” (ORTEGA y GASSET, 1991, p. 31). Tal posição
preconiza uma ‘arte pura’, não ‘contaminada’ pela realidade, pressupondo como
viável ao artista – no processo de produção de suas obras – abstrair de todos
os conteúdos aprendidos, frutos da vida, da sociedade e da cultura em que
nasceu e foi criado. Ou seja, de apagar, fazer tabula rasa de todas
as formas de ser, pensar e agir por ele apreendidas e assumidas como suas, no
decorrer de sua existência, desvencilhando-se da história da
humanidade, da cultura e da sociedade em que vive, tudo aquilo que estrutura e
dá sustentação à sua individualidade, para, como criar ‘formas limpas’,
zeradas de vida. Isto seria de todo impossível, pois
O autor, como momento
constitutivo da forma, é a atividade organizada e oriunda do interior, do homem
como totalidade, que realiza plenamente a sua tarefa, que não presume nada além
de si mesmo, para chegar à conclusão, é, ademais, o homem todo dos pés à
cabeça: ele precisa de si por inteiro, respirando (o ritmo), movimentando-se,
vendo, ouvindo, lembrando-se, amando e compreendendo (BAKHTIN, 1998, p. 68).
A concepção arte
pela arte, num processo coerente de purificação, com o intuito de “eliminar
do seu seio tudo o que pudesse relacioná-la a um tempo e espaço específicos”,
na busca da desumanização, da “ruptura dos laços com a vida foi
aprofundando a distância em relação ao público (...) Ao descartar o conteúdo
humano-vital”, enclausurou-se “na forma, agora apreendida como um em si, um
mundo autônomo presidido pela neutralidade – qualidade até então considerada
privilégio das ciências –, cujo conhecimento exige o domínio de códigos
específicos” (PEIXOTO, 2003, p. 79). Aferrada a um conceito de forma em si
mesma, dissociada do conteúdo, tornou-se uma arte do nada: “a
arte pela arte, isto é, (...) a arte em que a arte do artista constitui a única
matéria e cujo único destinatário é a comunidade artística, constitui uma arte
para nada, sobre nada”, voltada para um público exclusivo, composto por
“produtores de bens culturais que também produzem para produtores de bens
culturais” (BOURDIEU, 1999, p. 196; 105). Por motivos óbvios, configurou-se uma
produção hermética, inatingível para o ‘grande público’ (formado pelos leigos
em Arte), caindo no gosto e nos interesses da burguesia, classe que a elegeu
como a única verdadeira arte, a grande arte,
produtora de obras únicas, inacessíveis ao vulgo e – é claro – por isso
mesmo, detentoras de um altíssimo valor de mercado. “Pela necessidade de
sustentar a aura da exclusividade, do objeto único, raro e inacessível –
produzido por indivíduos especiais ou gênios e, como tal, detentor de grande
valor (valor de mercado, entenda-se) –, nesse novo quadro, o distanciamento do
‘grande público’ veio a se tornar um imperativo” (PEIXOTO, 2003, p. 79).
O processo de
elitização em curso foi paulatinamente impondo a criação de um corpo de
especialistas – marchands, professores e críticos de arte –, que
domina os códigos refinados disponibilizados para grupos restritos, e que é
capaz de conhecer e julgar o valor estético – e de mercado! – da obra, dentro
dos parâmetros da arte pela arte. Rompendo a dialética
quantidade/qualidade, não há preocupação com ampliação de público – nem é visto
com bons olhos o sucesso de seus produtores frente ao ‘grande público’, o de
não-produtores de bens culturais (BOURDIEU, 1999, p. 105; 159). Esse tipo de arte compõe o que se denomina sistema
de arte, uma estrutura de “relações sociais de produção, circulação
e consumo, do campo da arte erudita, cujo funcionamento envolve uma
série de instâncias e seus respectivos especialistas”. As “instâncias de
produção (o artista isolado ou associado) e de consagração, legitimação,
conservação, difusão e venda (as academias, a crítica, os salões, os museus, as
revistas especializadas, o sistema de ensino com seus diplomas, títulos, as
galerias, etc.)” (PEIXOTO, 2001, p. 85; nota 13. Com base em BOURDIEU, 1999,
passim).
Para o presente
trabalho interessa focar o papel atribuído à escola formal pelo sistema de
arte: cabe a ela dar sustentação e conferir legitimidade a esse sistema
formando, basicamente em nível superior, dentro dos parâmetros da arte
erudita, todos os seus quadros – artistas, professores, críticos,
historiadores e pensadores especializados em estética, entre outros, e, através
dos professores, dar formação básica a um público mais amplo composto pelo
alunado da escola comum (níveis Fundamental e Médio). Por tais características,
a escola “tem por função a reprodução pela inculca, como também a legitimação e
a consagração culturais” porque, “segundo critérios internos, escolhe o
conteúdo que merece ser transmitido e adquirido, define e distingue as ‘obras
legítimas’ das ilegítimas, bem como preconiza maneiras legítimas e
não-legítimas de abordar as obras legitimadas”, tudo em prol da ortodoxia
cultural. Paralelamente, no plano individual “cria uma ‘segunda natureza’ ou habitus
que, num nível inconsciente, estabelece as condições de obediência consciente
aos modelos preconizados” (PEIXOTO, 2001, p. 85-86; com base em BOURDIEU, 1999,
p. 120-125).
Do ponto de vista
do materialismo dialético, para o qual a Arte é um bem precioso da cultura
humana que deve ser disponibilizado a todos, sem óbices, essa posição
imposta/assumida acriticamente pela escola é, por vários motivos, inaceitável:
a) por elitizar o ensino, ao denegar a Arte popular como ‘Arte’, enjeitando-a
do rol do que deva ser ensinado/aprendido como tal. O que dela permanece no
currículo é rotulado como folclore; b) por ser excludente, afirmando
como ‘Arte’ apenas aquela produção a que uma gama enorme de indivíduos não tem
acesso; c) por impingir uma visão unidimensional de Arte; d) e, por tudo que
foi apontado, afrontar/restringir a liberdade do desenvolvimento humano em toda
a riqueza de possibilidades que ele requer. Do ponto de vista da produção,
trata-se de uma restrição abusiva à liberdade de criação/expressão/fruição da
Arte.
No interior da
concepção elitista, vinculada ao desenvolvimento das psicologias e pela posição
individualista por elas assumida, houve uma tentativa de resgate – se bem que
parcial – da relação Arte e vida, pelo viés da individualidade: a Arte como "expressão
individual de emoções". Para Canclini, a “arte elitista, da burguesia –
mas que inclui também setores intelectuais da pequena burguesia – privilegia o
momento da produção, entendida como criação individual: supõe que o artístico
se realiza inapreensivelmente, no gesto criador e substancializa-se na obra de
arte” (CANCLINI, 1984, p. 49). Assim compreendida, a obra é transformada em
fetiche, tida como “revelação, a mais pura expressão de sentimentos e emoções
pessoais, fruto da genialidade de seu criador; a originalidade,
portanto, é tida como valor supremo. Os processos de distribuição e consumo
são relegados a acessórios posteriores à obra, sem relação direta com ela”
(PEIXOTO, 2003, p. 16).
Diametralmente oposta, a concepção
dialética entende que:
para conseguir ser um
artista, é necessário dominar, controlar e transformar a experiência em
memória, a memória em expressão, a matéria em forma. A emoção para um
artista não é tudo; ele precisa também saber tratá-la, transmiti-la, precisa
conhecer todas as regras, técnicas, recursos, formas e convenções com que a
natureza - esta provocadora - pode ser dominada e sujeitada à concentração da
arte. A paixão que consome o diletante serve ao verdadeiro
artista; o artista não é possuído pela besta-fera, mas doma-a (FISCHER 1987, p.
14).
Obviamente, domá-la
significa que a racionalidade, a ética e a capacidade decisória, tendo por
suporte os conhecimentos de ordem diversa que necessariamente entram na
produção de uma obra, são tão importantes quanto a emoção e a paixão. Por outro
lado, esse pretenso elo com a vida é pouco consistente, pois na
concepção da arte como expressão emocional do indivíduo criador, este é
tomado como um ser ‘puramente psicológico’ como um em si, independente,
isolado do contexto histórico-social-cultural em que vive, bastando-se a si
mesmo; quando muito, passível de ‘influências’ externas. Todos os nexos e
determinações sócio-histórico-culturais que marcam a personalidade individual
não são tomados em consideração ou relegados a um segundo plano, tidos como
meras ‘influências’.
Arte, indústria
cultural e a escola
A par da
definição de uma arte erudita, destinada a uma minoria ilustrada, o sistema
de arte comporta uma área artística para o "grande público",
aquele formado pelos não-produtores de bens culturais, que, tal como
Adorno, Bourdieu denomina "indústria cultural", e aponta como
um dos determinantes do avanço de sua produção a extensão de um público que
teve acesso ao ensino elementar (BOURDIEU, 1999, p. 102). Esse segmento produz
a "arte média" para consumo socialmente heterogêneo, cujo campo de
ação é demarcado tanto técnica quanto esteticamente pelos interesses dessa
ampla categoria. Para ele, trata-se de uma arte elaborada por métodos
semi-industriais, de acesso fácil, pois que evita temas controversos, apóia-se
na trivialidade, em personagens em geral otimistas e calcados em estereótipos,
que devem facilitar a projeção à maior gama de público possível. Denomina-se
uma "arte-média" porque a produção é totalmente definida por um
"público médio" - em geral demarcado por pesquisa de opinião e médias
estatísticas. Essa produção, por visar o lucro, rege-se pela lei da
concorrência para a conquista e ampliação de mercados, pois o público será
tanto mais "significativo" quanto maior for sua extensão (BOURDIEU,
1999, p. 136-137). Trata-se de uma “mensagem indiferenciada produzida para um
público socialmente indiferenciado”, inclusive com forte autocensura dos
produtores para eliminar todos os signos e fatores de diferenciação (BOURDIEU,
1999, p. 136, nota 46).
Bourdieu explicita alguns dos
vínculos entre os campos da arte erudita e dos produtos da indústria
cultural. Para ele, ambos os campos “têm como princípio comum os progressos da
divisão do trabalho e a constituição de esferas separadas que favorecem a
explicitação das funções próprias a cada uma delas (‘negócio é negócio’) e a
organização racional dos meios técnicos adequados a estas funções”. Igualmente,
em ambos os campos os produtores são artistas e intelectuais “altamente
profissionalizados” que valorizam sobremaneira e de modo similar a técnica, o que,
na arte erudita, transparece na preocupação com o efeito – tanto no
sentido da impressão causada sobre o público quanto no sentido de efeito como
“fabricação engenhosa”. Na "arte média", o “culto da forma pela
forma”, uma herança da arte erudita, assumiu proporções assombrosas, em
função do que aquela arte passou a lançar mão de técnicas altamente
sofisticadas (BOURDIEU, 1999, p. 140-141).
Pela argumentação
estabelecida, a Arte vê-se “degradada à condição de meio subordinado aos
fins da economia capitalista de mercado”, como enfatiza MÉSZÁROS (1981, p.
192): tanto como produto massivo da indústria cultural – de todo
despreocupada com as necessidades e os valores efetivamente humanos, e
obediente às leis de mercado – quanto como produto para poucos ‘iluminados’ ou
subsumida como uma mercadoria qualquer pelo mercado de obras de arte. Nessa condição submissa, a Arte fica impedida
de exercer sua finalidade maior: a de colocar os homens em contato com a
livre representação sensível de “uma etapa do desenvolvimento da humanidade”
(LUKÁCS, 1968, p. 265) condensada numa totalidade concreta: o objeto artístico.
Toda e qualquer ‘mercadoria’, porque oriunda das relações técnicas e sociais de
produção – que regem o modo de produção capitalista – desumanizadas, desumanizadoras
e subjugadas pelas ‘leis de mercado’, contradiz a criação-fruição livre
de um bem essencialmente humano.
Há que se tomar
uma posição crítica rigorosa a respeito de tudo o que, sob a chancela de um
sistema que produz a fragmentação do homem, a ele impõe seus produtos
artísticos desumanizados e/ou manipuladores, descentrando-o do foco da vida
concreta, empobrecendo sua consciência do mundo e sua autoconsciência,
dispersando sua capacidade de compreender e realizar suas possibilidades de ser,
enquanto indivíduo integrante do gênero humano.
À escola, de modo
sistematizado e integrado, como a instituição mor promotora da humanização, ou
seja, da educação do homem, cabe, então, propiciar aos educandos toda a
gama de conhecimentos e condições necessários à análise e compreensão críticas
do universo da cultura – e nele, da arte – focando, em especial, o que concerne
à indústria cultural, já que na contemporaneidade, a mídia e sua
produção/difusão ocupam um lugar preponderante na vida das pessoas em geral. Entendendo ,
ainda, que a música constitui a área das artes mais intensamente difundida
pelos diversos canais da mídia (rádios; televisões – MTV em especial; cinema;
gravações em fitas K 7,
CDs, DVDs, MP3, etc.), fazendo-se presente maciçamente no cotidiano das
crianças e jovens de modo particular, elegeu-se focá-la prioritariamente neste
trabalho, como se pode ver a seguir, no texto da segunda autora que compõe este
painel.
Contudo, a
maioria dos professores, dada a sua formação erudita ou a ausência de formação
– do que, entre outras coisas, trata o texto da terceira painelista –, ao se
defrontar com o gosto artístico/musical das crianças e jovens, fica entre duas
alternativas: ou simplesmente renega o conjunto da música midiática,
negando-lhe qualquer valor artístico e impondo aos alunos um saber erudito sem
vínculos com a contemporaneidade, ou, na tentativa de ser/parecer ‘atualizado’
(ou benquisto?!), sucumbe inconteste os hábitos musicais dos alunos, com pouco
ou nenhum aporte de conhecimentos para que os jovens desenvolvam uma
consciência abrangente, pelas raízes histórico-sociais e teórico-técnicas do
que vêem/ouvem e possam, então, reconhecer-se enquanto fruidores ativos da
arte/música, constituindo criticamente e ampliando sua autoconsciência.
Para um melhor e
mais seguro desempenho dos professores, urge que as escolas de formação de
artistas e de professores de arte revejam suas posições e reconstruam seus
currículos com base numa concepção de Arte abrangente, como produto do
trabalho humano de criação que, sem especificações de cunho
classista-elitista, possa ser conhecido, assenhoreado pela totalidade da
população (ao menos a escolarizada), cuja afluência seja democratizada por se
tratar de um direito humano: o de ter livre acesso aos bens culturais
e artísticos da humanidade, porque tal aproximação é essencial ao processo
de humanização.
Os currículos de
formação musical, com raras exceções, são centrados na arte/música erudita e só
a ela reconhecem como Arte, como bem avaliou Bourdieu. Pela lógica, o movimento
de deselitização deveria partir das escolas superiores formadoras dos
profissionais, já que lá se encontram os mais bem preparados artistas, mestres
e doutores. Contraditoriamente, esse é o reduto mais arraigado à ‘grande arte’,
mais conservador e muitas vezes preconceituoso em relação à chamada ‘arte
popular’ (ou naïf, para alguns) e às diversas manifestações culturais
das minorias, como a ‘arte indígena’.
A
arte como produção humana e fonte de humanização
Reitera-se,
então, a Arte como trabalho livre de criação, uma produção exuberante de
vida, livre de toda e qualquer ação coercitiva: seja dos modismos
(semi)absorvidos dos países centrais e apresentados/impostos por Salões e
Bienais, seja do interesse econômico que rege o mercado de arte capitalista,
seja de cunho político-partidário, religioso, ou de qualquer outra ordem. Uma
Arte que promova pelas suas qualidades estéticas, tanto no criador quanto no
fruidor, a consciência de valores humano-sociais essenciais, tais como a
busca de se educar, de ser mais e melhor, de conhecer-se e
respeitar a si e os outros, de solidarizar-se aceitando as
diferenças, de desenvolver ao máximo grau possível suas capacidades e
necessidades especificamente humanas para que possam contrapor-se a toda a
gama de necessidades postiças e artificiosas voltadas ao ter e ao consumir,
criadas ou repassadas pela mídia como as únicas genuínas. Enfim, uma Arte que,
através do seu valor estético, todos tenham condição de aguçar a sensibilidade
e desenvolver a capacidade do conhecimento sensível ao máximo grau possível.
Quando comparada
à lógica e à solidez do conhecimento científico, considera-se que,
... se a ciência, para
ser ciência, precisa dissecar a vida [ou os seres já sem vida] – ou seja,
destruí-la, no processo de construção de suas leis universais –, a arte, ao
contrário, a vivifica porque a toma em sua condição de ser vida [grifo
da autora], em sua condição de concretude plena de determinações e de
contradições, tal como ela é (existe) na verdade do movimento vital-histórico”
(PEIXOTO, 2003, p. 72).
Ao que tudo
indica, parece não haver possibilidade destrutiva na Arte genuína, só
acréscimos àquele que com ela se envolve pela criação e/ou pela fruição.
Àqueles que a ela se entregam, sem impor-lhe ou confrontá-la com as leis da
razão, visto não se tratar de um conhecimento racional-discursivo-universal,
como o da ciência, e, sim, de um conhecimento sensível da totalidade humana
envolvida no objeto de artístico, em especial a sutileza da sensibilidade que é
o que a Arte exige e, dialeticamente, pode produzir.
Versando sobre a
tragédia, a dor, a violência, tanto quanto a felicidade, a alegria ou a beleza,
ao apresentá-las/representá-las promove um novo conhecimento, um novo
nível de consciência de ordem sensorial-sensitivo sobre uma totalidade
material/espiritual: um objeto, ato ou fato, pois se trata de apreciá-los
através da visão de um outro indivíduo humano, carregada de uma outra
concepção de mundo, fruto de uma outra realidade de vida que, até o
momento, era-lhe desconhecida. Assim, obra de arte pode surpreender não só o
fruidor, mas igualmente seu criador, pois o objeto, ao ser apresentado ao
mundo, a ele se contrapõe como uma nova realidade social à que ele, como
qualquer outro indivíduo, também se confronta e reage. Ao fruidor, pela atenção
concentrada dos sentidos e pela reflexão que desperta, acrescenta percepções e
informações tanto sobre o criador, seu mundo e sua cosmovisão quanto sobre o
próprio fruidor (a autoconsciência), pois
a particularidade da
arte reside, precisamente, em poder apreender e representar a astúcia da
vida, entendida, aqui, como a capacidade da vida de escorrer, escorregar por
entre os dedos da ciência e de suas leis. O fato da arte não pretender a
universalidade não a desmerece, muito pelo contrário, é aí que se encontra sua
força e sua enorme virtude, em tomar nas mãos a própria vida em seu movimento
pujante. Por apreender a vida na sua pujança e concretizá-la numa
particularidade (a obra de arte), a arte pode contribuir de modo eloqüente para
ampliar, aprofundar e enriquecer a consciência humana (PEIXOTO, 2003, p. 72).
“No mundo próprio
da obra de arte, na sua unidade orgânica, pulula a multiplicidade de
determinações e, portanto, essa parte condensada representa-expressa de
maneira intensiva, verdadeira e essencial a vida de determinada etapa da
humanidade” (PEIXOTO, 2003, p. 73), pois, como um objeto, uma concretude, ela é
sempre uma parte que aponta para o todo: o criador, sua
época e, através dela, toda a história humana “em sua contraditoriedade (sic),
em seu movimento e em sua perspectiva reais”, que, em essência, compõe a unidade
da forma-conteúdo da obra (LUKÁCS, 1968, p. 267).
Assume-se, assim,
que a Arte, por ser simultaneamente, trabalho de criação/expressão social e
histórica da humanidade do homem/ideologia/forma de conhecimento – e
precisamente por tal motivo – configura-se como fonte de humanização.
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ENTREVISTA - Arte e Capitalismo - Relações Perigosas
Com Maria Inês Hamann
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http://www2.pucpr.br/reol/index.php/DIALOGO?dd1=814&dd99=view
http://www.portalanpedsul.com.br/admin/uploads/2002/Educacacao,_Historia_e_Filosofia/Mesa_Redonda/10_24_45_m42-92.pdf
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Brasil, 10 de abril de 2013
Universidade Planetária do Futuro - Ano IV
Centro de Ciências Sociais
Departamento de Artes
Depto. de Divulgação Cultural e Científica
Coordenação: Ana Felix Garjan
anafelixgarjan.artes.2010@gmail.com
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