Maria de Fatima Felix Rosar [1]
Para darmos início ao nosso diálogo, poderemos reconhecer alguns pontos de partida e, quem sabe, de convergência ou divergência, talvez, entre perspectivas teóricas-práticas difundidas na área da educação. É muito provável que se estabeleça assim um movimento dialético entre aproximações e distanciamentos e se isso ficar nítido em nosso pensamento teremos, desse modo, uma primeira aproximação com o cerne de um tema que se apresenta de forma instigante. Onde emerge a contradição? Qual o conteúdo das contradições que vivenciamos?
Vejamos que possibilidades de leitura podem se configurar sobre esse tema, considerando-se a polissemia inscrita em nossa linguagem e em nosso pensamento, sempre que expressamos idéias, concepções, como resultados de experiências e práticas materializadas no nosso cotidiano.
Quando falamos de professores e aprendizes, podemos entender que se estabelece na prática educativa uma relação pedagógica entre professores e alunos. Mas, também ocorre, embora nem sempre se ressalte em primeira mão, que os professores, nós mesmos, somos ao mesmo tempo professores e aprendizes numa sala de aula.
Se optarmos pelo tratamento dessa relação intrínseca entre cada um de nós e o seu Outro, de que podemos falar, senão do nosso modo próprio de ensinar e aprender? Entretanto, se reconhecermos que a nossa identidade se constitui no duplo movimento de ensinar e aprender, onde reside a contradição? Não somos um ser duplicado, logo estamos falando de um ser uno. Porém, esse ser uno provoca dissonâncias em seu próprio mundo interior, a partir de seu posicionamento no mundo real.O mundo real define em grande medida o conteúdo da nossa subjetividade, o que não significa que nossas escolhas e projetos não produzam também impactos sobre a realidade concreta.
Do que estamos falando exatamente, ao propormos uma abordagem desse tema, a partir de uma lógica dialética, que nos apresenta desdobramentos, de um modo controvertido e até paradoxal, se levarmos em conta que estamos, em certa medida, nos colocando no centro de um debate que tem se constituído como um divisor de águas entre o pensamento crítico de viés marxista e o pensamento pós-moderno, desenvolvido a partir das abordagens de caráter multicultural, foucaultiano e micro-histórico?
Na realidade, busco contribuir para a construção de aproximações possíveis entre o pensamento histórico-dialético e a abordagem psicanalítica, considerando a dimensão histórico-objetiva e estrutural-subjetiva, trazendo indícios de que a prática educativa, como lugar da contradição precisa ser melhor clarificada, se se pretende desenvolver a condição mais contínua de seres que ensinam e aprendem simultaneamente. Isso não nos priva do reconhecimento de que somos professores. E sabemos que professores podem ser mestres e mestres são inesquecíveis. Mas, quem educa precisa se educar, diariamente, já nos alertava Marx ao indagar: quem educa o educador?
O espaço da prática educativa no cotidiano das nossas salas de aula está repleto de contradição. Vejamos de um ponto de vista mais objetivo e, ao mesmo tempo, de um ponto de vista mais subjetivo, de que modo se expressa essa contradição e de que modo podemos admiti-la como mediadora de processos de desenvolvimento humano mais avançado, se não nos negarmos a identificá-la.
Estamos na condição de professores responsáveis pela educação de muitas gerações há muitos séculos. Na realidade, os educadores constituem-se como pedagogos (aqueles que conduzem os educandos), desde a Grécia, mesmo que não estivessem recebendo essas denominações e não estivessem sendo valorizados pelo papel exercido de modo mais marginal, na sociedade grega. Manacorda nos lembra que “provavelmente a evolução histórica foi do escravo pedagogo e mestre na própria família ao escravo mestre das crianças de várias familiae e, enfim, ao escravo libertus que ensina na sua própria escola.” (1989:78)
E, desde a Grécia, sabemos que algumas práticas educativas, tal como ocorreu com os seguidores de Sócrates, Platão, Aristóteles, Epicuro, estavam direcionadas à reflexão sobre a realidade e sobre o interior dos seres humanos, com a perspectiva de que precisamos nos conhecer e precisamos estabelecer um caminho de busca do conhecimento, da sabedoria e da felicidade.
Fomos educados para sermos educadores por, pelo menos, uma dúzia de professores que, desde o ensino fundamental até o ensino superior compuseram suas imagens, palavras, conceitos, cenários, no nosso pensamento, povoando o nosso imaginário, tanto em sua dimensão cognitiva como afetiva.
De tudo que recebemos, processamos aquilo que foi possível processar, mediante uma maneira de elaboração que ocorre de modo consciente e, também, inconsciente. Reproduzimos muitas vezes o modo de atuar em uma sala de aula, tal como fazia um professor ou uma professora, sem que sequer tenhamos identificado o quanto repetimos certas práticas assimiladas pelos exemplos que nos foram dados concretamente. É claro, assimilamos, muitas vezes, exemplos mais saudáveis e mais marcantes, do ponto de vista intelectual e emocional. Entretanto, muitas vezes, estamos reproduzindo práticas pouco saudáveis, que foram associadas ao nosso núcleo subjetivo mais problemático, onde se instalam as neuroses que todos nós portamos, como seres humanos.
Em estudos feitos com professores, alguns depoimentos indicam a complexidade desse lugar de professor na sala de aula. “Alguns professores relatam ter dificuldade em lidar com seu lugar de autoridade, e ocupar este lugar quando é confundido com autoritarismo. Outras dificuldades se referem às expectativas do professor quando professor e aluno não se encaixam, pois o aluno se coloca submisso a ele e perde a capacidade de pensar por si próprio.” ( SILVA, 1994:79)
Se são tão complexas as relações que se estabelecem em sala de aula e sabemos da importância do nosso papel na constituição desse espaço, a pergunta que se coloca, de modo inevitável é: Estou construindo as condições necessárias para ocupar esse lugar de professor, de mestre?
Vale pensar como nos constituímos efetivamente em seres humanos mais ou menos saudáveis, mais ou menos contraditórios. Mais ou menos integrados ou desintegrados. Qual a nossa condição em termos concretos, objetivos e subjetivos, para realizarmos as práticas educativas dentro e fora da escola?
Ao contrário de Hobbes e Locke, Hegel e Marx identificaram o processo de construção da condição humana no leito da história. Claro, Marx foi muito além da dialética hegeliana, ao evidenciar que é na história, mas, particularmente, no mercado, que se constrói o processo de sociabilidade, ao mesmo tempo em que estão dadas as condições de descaracterização da dimensão humana. Ou seja, o modo de inserção no processo de produção capitalista, na condição de força-de-trabalho expropriada e alienada, nos conduz a um quadro progressivo de degradação humana, que pode, pouco a pouco, nos desumanizar.
Se é assim que se compreende a constituição de nossa subjetividade como seres humanos e, portanto, também, como professores, nascemos no leito da história onde emerge a contradição real desse processo de constituição humana. Estamos em meio a um processo histórico em que, para a maioria dos seres humanos, são negadas as condições de desenvolvimento ampliado e multidimensional. Potencialmente, somos todos seres omnilaterais, porém a organização do trabalho na sociedade capitalista define trajetórias, percursos, projetos de vida coletiva, condicionando a classe trabalhadora a um processo de “encolhimento”, uma vez que não lhe é garantida possibilidade de acesso à ciência, à cultura, à prática de desenvolvimento corporal, à expansão do pensamento e de sua prática social.
Historicamente, a educação destinada à massa de trabalhadores nas cidades foi sempre precária e deficiente. Marx e Engels recolheram evidências dessa situação na Inglaterra e produziram trabalhos apresentados em Congressos e publicados em livros, como Le Syndicalisme (Marx e Engels) e a Situação das Classes Operárias na Inglaterra (Engels).
Em notas de Marx relativas aos relatórios de inspetores em 1857, fica patente o engodo que se produzia nas escolas nas quais se mantinham as crianças para obterem uma certificação de escolaridade. “Quando visitei uma escola que passava tais certificados, fiquei de tal maneira chocada com a ignorância do mestre, que lhe disse: 'Perdão, Senhor, sabeis ler? 'O quê, um bocadinho', foi a resposta; e para se justificar, acrescentou: 'Em todo o caso, sei mais do que os meus alunos” (Marx e Engels, Crítica da Educação e do Ensino, Lisboa, Moraes, 1978, p.66).
Estavam dadas essas condições de educação destinada aos filhos dos trabalhadores no século XIX. Será possível considerarmos que no século XXI são muito diferentes as condições de funcionamento das escolas públicas? Claro que são diferentes. Elas têm uma infra-estrutura melhorada, dispõem de mais espaço, mais livros e até equipamentos como televisão, DVD, computadores. No entanto, estão as crianças, na atualidade, em escolas em que os professores estão realizando um processo de ensino-aprendizagem exitoso?
Se tomarmos os dados do Ideb, na maioria dos estados brasileiros, existe motivo de preocupação, nesse sentido. Se tomarmos os indicadores do último relatório UNESCO, recém-publicado, os dados do Brasil continuam críticos.
Ocorre que os professores estão progressivamente se qualificando em nível superior, portanto, nem de longe reproduzem a situação do quase analfabetismo dos mestres do século XIX na Inglaterra. Por outro lado, têm dificuldade de produzir práticas educativas mais exitosas, apesar das novas teorias difundidas e até apreendidas nos mais variados cursos, capacitações, congressos em que circulam os modelos da atualidade: professores reflexivos, professores-pesquisadores, professores leitores e produtores textuais, professores-orientadores, professores-mediadores.
Talvez essa realidade entre teorias e práticas consideradas muito atualizadas esteja produzindo uma nuvem de fumaça que não nos permite identificar onde se produzem as contradições da prática educativa, que continuadamente realizamos durante décadas, como professores e, até mesmo, como reconhecidos mestres.
Uma das evidências dessa contradição diz respeito ao fato de que a nossa origem de classe, predominantemente alinhada com a identidade da pequena burguesia, da classe média, nos conduz, no nível do imaginário, à fantasia de nos igualarmos, em termos de condições de vida, com o status e o modus vivendi da classe abastada. Os sonhos de consumo dos professores, de modo geral, estão muito distantes da realidade da vida das crianças e jovens pobres que encontramos nas salas de aula. Somos referências para eles, podemos ser até mesmo modelos para crianças e jovens que têm relações sociais muito mais restritas no seu círculo de vida familiar e social.
De que modo, com a nossa escolha por um modo de vida mais alinhado aos imperativos do mercado influenciamos os nossos alunos? Buscamos o status de uma classe que não corresponde à nossa origem social? Já tive oportunidade de ouvir de algumas pessoas que em muitas capacitações transmite-se aos professores a receita do sucesso, de como se conhece as pessoas bem-sucedidas pelas suas vestes, seu modo de andar, seus pertences pessoais. (Não sei se já viram como Revistas de bordo em vôos de várias companhias aéreas nos apontam os pertences de uma pessoa bem sucedida, como indicadores de características de seu modo de ser.)
Como nos colocamos frente aos nossos alunos? Estamos em geral mais distantes de sua realidade, porque temos uma certa necessidade de negar uma origem mais simples, frente aos padrões de sucesso e de gozo material que indicam sucesso profissional, de acordo com os idealizadores das fórmulas da pedagogia de resultados.
Esses parâmetros que nos são inculcados, a partir da lógica do mercado, produzem muitos outros impactos além do nosso distanciamento em relação aos nossos alunos. Na verdade, distanciamo-nos de nós mesmos, ao assumirmos características de personagens formatados pelo mercado. [2] Para o mercado seremos seres cada vez mais valorizados enquanto consumidores, à medida que estivermos integrados ao processo de consumo do que é descartável, do que é supérfluo, do que é luxo e lixo também.
Essa contradição entre ser e não-ser o sujeito formatado pode produzir uma grande dissonância interna, levando-nos a uma situação de maior fragilidade na prática de atuação diária como professores e aprendizes. Isso ocorre, principalmente, se fizermos um processo de adormecimento do pensar crítico, se fizermos uma cristalização da postura de adesão aos padrões de sociabilidade e de mercantilização do fazer pedagógico na sociedade em que vivemos.
A essa altura adentramos o núcleo de produção de mais uma grande contradição que se instala na nossa prática de professores e de mestres. Qual o nosso ideário de educação? O que nos move? A busca de uma forma de sobrevivência numa sociedade em que os postos de trabalho estão ficando escassos? A possibilidade de intervir na realidade, promovendo práticas educativas de caráter mais emancipador, que questiona a ordem estabelecida e historiciza esse processo, situando as crianças e os jovens no contexto de uma sociedade de classes?
Como podemos nos posicionar criticamente, se alimentamos o nosso imaginário com as ilusões infantis do consumo como fonte de prazer, que nos desloca das questões relativas às nossas frustrações, ao luto pelas perdas, ao reconhecimento dos nossos limites e do nosso conformismo diante do status quo?
Somos seres históricos em permanente estado de transformação. Entretanto, podemos ser “mumificados” se nos deixarmos levar, de acordo com a nova moda, somente no nível da superfície; sem termos a decisão de penetrarmos as nossas próprias entranhas, de modo a identificarmos que espécie de seres somos nós como educadores, em meio a um milhão de possibilidades de nos travestirmos em posições verdadeiramente, contrárias aos processos educativos transformadores.
Talvez precisemos cada vez mais nos colocar na posição de aprendizes, se desejamos de fato ser professores e mestres. Talvez tenhamos a necessidade inadiável de descobrir se temos ou não “paixão de formar”, entendendo-se essa paixão como “ser capaz de amar o outro na diferença própria do outro, ser capaz de perdê-lo como discípulo e como extensão de si próprio, mas ganhá-lo como colega pensante e independente. E, ao mesmo tempo, ser capaz de reconhecer a dependência da relação formativa, que se dá na medida em que o outro é importante para haver o diálogo, o conhecimento, para se articular idéias, sendo um interlocutor do outro.” (SILVA, 1994: 110).
Foi com Marx que aprendemos o quanto é alienante o trabalho na fábrica. Com ele também aprendemos que a ciência e a técnica fazem parte da base econômica e que ambas resultam de um trabalho coletivo, sendo depois apropriadas e monopolizadas pelo capital.
Essa situação que é tão concreta no atual momento de desenvolvimento do capitalismo que expandiu a sua capacidade de produção de bens materiais e imateriais, como mercadoria, nos coloca diante do desafio de nos conscientizarmos de que somos inseridos nesse processo de mercantilização. Somos também tomados como mercadoria, se nos deixarmos ficar passivos nessa sociedade em que Estado e Mercado são instâncias que se interpenetram e se potencializam no projeto de manutenção da ordem burguesa.
Nessas condições é necessário realizar uma luta no domínio ideológico; uma luta de idéias, de ideais que possam promover o desvelamento das contradições em que estamos imersos e que constituem parte substancial do nosso mundo subjetivo, sem o que nos deixamos apreender pelas armadilhas dos processos de sedução do brilho e do fetiche inscrito no mercado dos bens materiais e das idéias que fundamentam as nossas relações pedagógicas e o nosso modo de atuar como educadores na sociedade.
Para sermos ao mesmo tempo professores e aprendizes, necessitamos expandir o nosso pensamento, a partir de práticas educativas que nos permitam questionar as nossas próprias certezas. Sabemos o quanto somos capazes de produzir mudanças, embora isso não produza uma transformação radical em termos da vida material dos nossos alunos. Entretanto, precisamos de modo programático e sistemático demonstrar para os nossos alunos que o dinheiro não substitui a inteligência. Que o capitalismo destrói a humanidade inscrita potencialmente nos seres humanos. Que o espaço do conhecimento e da cultura resulta da construção histórica de todos os trabalhadores em todos os séculos.
Marx dizia em seus Escritos Parisienses, em 1844:
“Na sociedade mercantil desenvolvida em que vivemos presentemente, a inteligência vende-se e compra-se sistematicamente, e é com o dinheiro que nascem as universidades, enquanto a ciência venal funciona mediante um salário – e o patrão é o pagador. O dinheiro liga e mede tudo como escreve Shakespeare: ' Ora! Deus visível que liga estreitamente as coisas incompatíveis, e as obriga a abraçar-se, que fala por todas as bocas e une o que é contra a natureza.” No período venal do capital, os artistas e pensadores são constrangidos à mediocridade e ao silêncio. (Marx e Engels. Crítica da educação e do ensino, Lisboa, Moraes, 1978:26).
E nós professores-aprendizes, o que fazemos com a nossa prática educativa? De que modo podemos enfrentar a contradição entre ser e não-ser educador diante das estratégias ideológicas do Estado e do Mercado?
Referências bibliográficas
MARX, K. e ENGELS, F. Crítica da educação e do ensino, Lisboa, Moraes, 1978
MANACORDA, Mario Alighiero. História da educação. Da antiguidade aos nossos dias. São Paulo: Cortez:Autores Associados, 1989.
SILVA, Maria Cecília Pereira da. A Paixão de formar. Da psicanálise à educação. Porto Alegre, Artes Médicas, 1994.
UNESCO. Relatório da situação da educação. 2008
[1] - Atuou como docente na UEMA, UFMA e UNICAMP, trabalhando, atualmente, como consultora da organização não-governamental Formação- Centro de Apoio à Educação Básica, na cidade de São Luís - MA.
[2] “A identificação com os aspectos 'ideais' do professor é algo que foi observado quando descrevi os modelos de professor que interferiram nas escolhas profissionais. A isto chamo de “figuras de identificação”. (SILVA, 1994:108).
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Brasil, 04 de janeiro de 2011 - XXI
Profa. Dra. Maria de Fátima Felix Rosar
Diretora do Centro de Ciências Humanas
Universidade Planetária do Futuro
Departamento de Comunicação e Divulgação Científica
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